"Um drama jamais enunciado abre as portas dos afetos e nos lança ao tempo sem tempo, mantido apenas pelas forças da técnica e do Belo. Com trilha acertada e visão geral profunda, Olha pra mim é sensível registro estético acerca daquilo que o coração jamais expressa por completo".  

Olha pra mim. POR Márcio Tito, DEUS.ATEU.

Publicado em 20 de junho de 2025.

  Criando um caminho inusitado perante a tradição de um país cujas artes, reiteradas vezes, surgem altamente narrativas, a Sutil Companhia se entrega de modo sensível ao expediente da técnica e repousa em cena um material intenso, cujo maior discurso aparece inscrito no corpo denso da conquista de movimentos, dinâmicas, texturas e atmosferas – tão capazes de narrar quanto, por outra via, narram os materiais cujas linguagens surgem mais facilmente reconhecíveis.

Sendo assim, ao dispor em cena tal conteúdo assim dotado de forte e bem-marcado universo autoral, o espetáculo enreda sentidos e sentimentos de maneira estética e coesa, dando a ver o pulso sensível das artes, e revelando valores como a superação de si, a intensa relação entre os sujeitos, os corpos e, por fim, o chiaroscuro perante um cenário-protagonista.

Desde o título, e perpassando também a conexão entre as figuras em um espaço cujos vãos permitem que os olhares jamais se desencontrem por completo, Olha pra mim parece versar e dançar acerca das ligações intensas e profundas, lançando ao centro dos debates noções acerca do que seria dependência ou desejo, convívio, coexistência ou interação forçada. Tais conquistas de sentido, de modo intenso e atraente, resistem a ultrapassar o campo do silêncio e, ao longo do expediente, aprofundam códigos que emanam dos corpos, das relações indubitáveis e, sobretudo, da composição geral – momento qual, por fim, percebemo-nos também protagonistas de um mundo cuja existência se dá junto aos desejos, aos afetos, às disputas e às recusas.        

"O conceito de 'efeito do observador', na física quântica, diz que o simples ato de observar uma partícula pode interferir em seu estado. Ainda que essa seja uma hiperssimplificação do conceito, é também uma ideia que nós, seres humanos, podemos compreender intimamente: ser vistos nos transforma".

Olha pra mim POR Fernando Pivotto, Tudo, Menos Uma Crítica

É também sobre isso que fala Olha Pra Mim, da Sutil Companhia. Na coreografia de Ádia Anselmi (que a dança ao lado de Rubens Vital), dois corpos agem/reagem/interagem com e entre si. Veem um ao outro e, ao verem, são também vistos. Ao serem vistos, são atravessados, são realizados, são concretizados. Não é que só existem por causa olhar do outro (seja “o outro” seu parceiro de cena ou nós, a plateia), mas existem de um modo diferente por causa do olhar do outro.

Publicado em 20 de junho de 2025.

Assim, o gesto, o movimento e o olhar são três vetores que estão em ação o tempo inteiro na coreografia. O peso e o tônus dos corpos influenciam a dança da mesma forma que essa coisa aparentemente etérea, subjetiva, metafísica que é o olhar, também. Vemos, em cena, dois corpos lidando um com o outro: afastamento e aproximação; dançar os mesmos passos, numa coreografia sincronizada, ou dançar cada um sua dança, ora complementando, ora se emancipando do dançar do outro; a vontade de ser atravessado pelo outro, transformado em algo inteiramente novo versus a vontade de atravessar o outro, transformar o outro, versus ainda a vontade de ser independente, imune ao outro — mas é possível ser imune a alguém, depois de ter sido visto?

Ao redor e sobre os dois dançarinos, um domo geodésico (de Max Delly) corporifica a metáfora do olhar: um tanto é visto, outro tanto permanece oculto (é possível ver de verdade alguém? é possível ver alguém por inteiro?), e essa estrutura tanto permite novos gestos e explorações espaciais quanto os limita. Ver, ser visto e permanecer oculto é um jogo de trocas, negociações, perdas e ganhos: não se pode ser algo sem deixar de ser o que se era antes; não se pode fazer algo sem deixar de poder fazer o que era possível antes.

Esse jogo de acúmulos, subtrações e transformações fala tanto das relações interpessoais (sou o que sou e também sou, para o outro, o que ele vê de mim; sou o que sou e também posso assimilar em mim aquilo que o outro vê em mim que eu não via antes) quanto da nossa relação com obras de arte.

Estão dispostos, no palco, diversos signos, códigos e possibilidades de fruição, conexão e compreensão que só se completam a partir do olhar do observador. Estão, em cena, todas as cargas simbólicas e subjetivas de Ádia e de Rubens, mas também as minhas. O meu olhar dança com eles, neles, projetando neles muito do que é meu, compreendendo em mim muito do que é deles, sendo atravessado por aquilo que eu vejo (e dou conta) e organizando também aquilo que é dançado não só no palco, mas no meu olhar.

E o mesmo acontece com o observador ao meu lado, e com o observador ao lado dele, e com o observador ao lado deste. Uma dupla de dançarinos sendo vistos por dezenas de duplas de olhos. E, nesse jogo, dezenas de danças possíveis. É curioso também perceber como, apesar dos pedidos para desligarem os celulares, e das proibições de registros, as pessoas volta e meia sacavam seus smartphones e postavam Stories, ou mandavam no Whatsapp fotos e vídeos de Olha Pra MimSusan Sontag fala, em Sobre a Fotografia, sobre o hábito do século XX de fotografarmos tudo como quem está numa caçada: miramos, disparamos e capturamos nosso troféu. Fotografar não é só um jeito de comprovar que vimos, mas de dominar aquilo que vimos. Na era das redes sociais e do FOMO, não basta só ver. É necessário registrar, compartilhar, é necessário anunciar que se viu, é preciso ser visto vendo.